domingo, 7 de agosto de 2011

Sou eu, não temais!

A liturgia deste final de semana nos conforta diante das várias circunstâncias de nossas vidas e da vida de nossa Igreja. O Encontro com o Senhor nos dá alento para que não desanimemos diante dos embates da vida, com os quais sempre nos deparamos na caminhada histórica da Igreja. A cada dia somos surpreendidos por situações que querem nos desanimar. Sentimo-nos como um pequeno barco no meio do grande lago envolvido pelas ondas e com o perigo de soçobrar.
O episódio de Jesus caminhando sobre as águas do Mar da Galiléia que escutaremos neste final de semana, também é encontrado em Marcos e João, mas somente Mateus apresenta a particularidade de Pedro, que pede ao Senhor que também possa ir até Ele caminhando sobre o mar. Isso se explica pela importância que o evangelista dá à figura de Pedro, como o primeiro dos apóstolos e designado pelo próprio Jesus como chefe da Igreja cristã nascente (cf, Mateus 16, 18-19).
Nessa passagem, podemos refletir sobre alguns aspectos presentes na perícope que são fundamentais da fé cristã: a questão cristológica, respondendo à pergunta: "Quem é Jesus"; eclesiológica (representada pelos discípulos e Pedro) e a figura de Pedro, que encarna o discípulo do modo como cada um de nós deve olhar para o Senhor em sua jornada.
Iniciemos com a reflexão sobre a figura de Jesus. Após a multiplicação dos pães Ele despediu a multidão e subiu numa montanha para rezar sozinho, por quase toda a noite. Certamente este grande tempo de oração deve ser colocado em relação com o milagre dos pães e o consequente desejo da multidão para proclamar Jesus como rei (cf Jo 6, 15). Como no deserto, também aqui Jesus resiste à tentação, por isso Ele ordena que seus discípulos prossigam o caminho enquanto Ele se coloca em profunda oração diante do Pai.
Em seguida, na madrugada, Jesus dirige-se até os discípulos, "caminhando sobre o mar" (v.25), os apóstolos não o reconhecem e veem nele um fantasma, Jesus tranquiliza-os dizendo: "Sou Eu, não tenhais medo”! Aparece a expressão que lembra claramente o “Eu sou” revelado por Deus a Moisés no episódio da sarça ardente (Êxodo 3, 14). Não só isso, mas quando Jesus subiu na barca, "o vento cessou" (v. 32). A situação lembra uma história anterior de Mateus, o "acalmar da tempestade" (cap. 8, 23-27), em que Jesus "repreendeu os ventos e o mar e deu-se uma grande bonança." Sabemos por vários salmos e passagens do Antigo Testamento que só Deus tem autoridade sobre os elementos naturais. Por isso, os apóstolos vendo tudo, O adoraram, dizendo: "Verdadeiramente tu és o Filho de Deus "(v. 33), isto é, reconhecem-no como o Cristo, o Senhor, o Messias enviado por Deus.
O aspecto eclesiológico é expresso com um simbolismo que teve grande alcance nos primeiros séculos do cristianismo: o barco com os apóstolos foi comparado com a Igreja, que, como Jesus havia predito, ela poderia estar em apuros e sofrer perseguição.
O escrito dos Evangelhos se dá após um longo período (cerca de 30/40 anos) de tradição oral e é feito para educar as comunidades cristãs primitivas. Mateus (estamos cerca de 80-90 dC) é, portanto, bem consciente da situação de sua comunidade (provavelmente localizada em Antioquia, a capital da província romana da Síria), que percebia, por vezes, caminhando dentro de várias tendências que ameaçam a integridade da fé: uma corrente de "anomia", que alegava uma liberdade absoluta diante da Lei de Moisés; "falsos profetas", capazes de grandes discursos, mas deveras inconsistentes e não seriamente engajados no caminho evangélico; fadiga e preguiça espiritual, causada pelo aparente atraso da vinda definitiva do Senhor, que se acreditava ser iminente; divisões no tecido da comunidade eclesial, com rigidez, contendas, espírito de vingança, e, finalmente, arrogância por parte de alguns líderes da comunidade.
Exteriormente, pois, a tarefa missionária (em obediência ao mandamento de Jesus) era desenvolvida entre mil dificuldades e obstáculos: os discípulos eram citados em intimações diante dos tribunais, com processos judiciais judeus e pagãos; tiveram que sofrer a pena dos açoites, denúncias e traições de amigos e parentes, especialmente, existia o conflito com o judaísmo rabínico da época, a necessidade de defender a fé cristã da contestação dos oponentes judeus a respeito da messianidade de Jesus, crucificado na cruz, de modo ignominioso, enquanto a ressurreição, diziam eles, foi apenas uma farsa! (cf. Mateus 28, 13-15)
Essas poderiam ser, portanto, algumas das provações e dificuldades representadas pela tempestade no lago, que foram visibilizadas por Mateus nas ondas que açoitavam o barco da Igreja. Essas situações que, embora possam alterar de nome e aparências, nunca faltaram, não faltam e não faltarão na história da Igreja. Isso nós podemos constatar também nos tempos atuais. Basta saber ler os sinais que estão ao nosso redor. Porém, a mensagem do Evangelho é clara: com Jesus, "o vento cessou" (v. 32), é, na verdade, somente em união com Ele que podemos lidar com os perigos e dificuldades, sem sermos esmagados.
O terceiro aspecto – a figura de Pedro – que podemos ver nesta página várias vezes, com suas características destacadas por Mateus no Evangelho: Pedro demonstra um enorme salto de fé em Jesus (ele é o único dentre os discípulos que se atreve a sair do barco no mar), mas, ao mesmo tempo, com a superação de perigo, também revela fraqueza e medo, que lhe rendeu a repreensão de Jesus: "Homem de pouca fé, por que duvidaste?" No entanto, ele experimenta que mesmo nesse momento de fraqueza Cristo vem para o resgate, estendendo a mão e agarrando-o, traz-lhe a salvação. Também aqui a mensagem é clara: todos nós somos chamados a ter uma grande fé no Senhor, mas também saber que, apesar de nossas fraquezas, nossos fracassos, nossos medos, Ele nunca nos abandona. Não temamos as tempestades, naveguemos na barca de Pedro, com Pedro, e é onde encontramos o Cristo que acalma as ondas trazidas pelos ventos contrários. Assim, teremos forças no Espírito, para que a Igreja continue pelos mares da vida, anunciando e testemunhando que Jesus é o Senhor.


† Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

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