domingo, 11 de abril de 2010

Domingo da Misericórdia

O Servo de Deus João Paulo II instituiu o Domingo da Divina Misericórdia, celebrado ano a ano, no domingo seguinte à Solenidade da Páscoa do Senhor Ressuscitado. Na tradição mais antiga era o domingo da semana “in albis” que encerrava o tempo da iniciação “aos mistérios” dos neo-batizados na Páscoa. Hoje essa tradição assumiu como uma forma de viver a vida cristã. Nesse sentido, o “terço da misericórdia” é um dos mais divulgados e assumidos dentro das devoções particulares.

O decreto da Penitenciaria Apostólica sobre as indulgências para esse domingo recorda que, “com providencial sensibilidade pastoral, o Sumo Pontífice João Paulo II, a fim de infundir profundamente na alma dos fiéis estes preceitos e ensinamentos da fé cristã, movido pela suave consideração do Pai das Misericórdias, quis que o segundo Domingo de Páscoa fosse dedicado a recordar com especial devoção estes dons da graça, atribuindo a esse domingo a denominação de “Domingo da Divina Misericórdia” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Decreto “Misericors et miserator”, 5 de Maio de 2000).

Neste domingo, o da caridade e da misericórdia, contemplamos o que nos diz o livro do Apocalipse: “Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último. O que vive; conheci a morte, mas eis-Me aqui vivo pelos séculos dos séculos” (Ap 1, 17-18). A certeza destas palavras confortadoras nos levam a um encontro permanente com o Senhor Vivo e Ressuscitado que caminha conosco na vida cotidiana.

Foi também no Domingo da Misericórdia do ano passado que comecei minha missão nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Recordo com muita emoção a bela e entusiástica acolhida deste querido povo em nossa Catedral de São Sebastião. Essa ocasião que não foi escolhida, mas sim foi a possível para marcarmos essa solenidade, é também um sinal de Deus para mim: trabalhar levando a misericórdia a todos, lembrando da vida nova que nos vem pelo Batismo e pela confissão, além de ter certeza de que o Senhor nos faz novos com a sua misericórdia.

Nesse sentido está muito longe do verdadeiro sentido da misericórdia a ideia falsa que isso tornaria as pessoas ainda mais fracas e continuariam no erro. Aliás, essa foi uma ideia que fizeram muitas vezes do cristianismo. É muito mais difícil, digo, é impossível perdoar – é muito mais fácil deixar correr o ódio e a vingança que saem quase espontaneamente dos corações machucados. O Cristão é chamado a ser sinal da misericórdia e perdão, sem ser conivente com o pecado e o erro. Acredito que esse é um tema que teremos que voltar muitas vezes para experimentarmos a cura que vem de nossa vida de conversão.

Recebi uma citação de Thomas Merton que repasso, pois creio que está dentro desse momento de nossa vida: “Misericórdia e justiça parecem-nos diferentes, nos atos de Deus constituem a expressão do seu amor. Sua justiça é o amor que distribui a cada criatura o bem que já foi determinado pela misericórdia. E a sua misericórdia é o amor cedendo, fazendo justiça as suas próprias exigências, e renovando os dons que havíamos recusado.”

Para marcar esse dia irei, no domingo à tarde, oficializar como Santuário Arquidiocesano da Divina Misericórdia a Igreja que já tem essa missão e função em nossa Arquidiocese, pedindo a Deus que as romarias e os trabalhos que lá serão executados ajudem na paz e fraternidade em nossa cidade.

Em meio à catástrofe que se instalou em nossa cidade do Rio de Janeiro e, praticamente em todo o nosso estado fluminense, com as chuvas intermitentes desde o último domingo, com os olhos fitos em Deus, somos convidados, neste sentido, a dirigir o olhar para Cristo, para experimentar a sua presença tranquilizadora nestes momentos de dificuldades e de sofrimentos.

O saldo da tragédia é irreparável, com mais de cem mortes, muitas pessoas desabrigadas, perdendo todos os seus pertences, numa situação dramática e com grande sofrimento para o povo querido de nossa Arquidiocese e dentro do âmbito de todo o Estado do Rio de Janeiro.

Para concretizar a nossa solidariedade, pedi às Paróquias, às comunidades religiosas e a todas as instituições da Arquidiocese, em especial a Cáritas Arquidiocesana, para atuar e ir em socorro de urgência em todas as nossas comunidades, além da ajuda em bens, alimentos e dinheiro que estão sendo arrecadados e entregues. É a Igreja Católica do Rio de Janeiro fazendo sua parte. Muitas vezes ajudamos outros locais com as arrecadações que fazemos nas catástrofes. Agora é o momento de nos unirmos às demais entidades e aos governos para minimizar o ocorrido e encontrar caminhos para o futuro como, alíás, recorda a nota que emiti na segunda-feira passada.

Porém, mesmo procurando fazer nossa parte no trabalho social, também lembramos a palavra deste domingo quando, a cada um, seja qual for a condição em que se encontre, até a mais complexa e dramática, o Ressuscitado responde: “Não temas!”; morri na cruz, mas agora “vivo pelos séculos dos séculos”; “Eu sou o Primeiro e o Último. O que vive”. “O Primeiro”, isto é, a fonte de cada ser e a primícia da nova criação: “O Último”, o fim definitivo da história; “O que vive”, a fonte inexaurível da Vida que derrotou a morte para sempre. No Messias crucificado e ressuscitado reconhecemos os traços daquele que foi imolado no Gólgota, que implora o perdão para os seus algozes e abre para os pecadores penitentes as portas do céu; entrevemos o rosto do Rei imortal que já tem “as chaves da Morte e do Inferno” (Ap 1, 18).

Deus é a nossa esperança nestes momentos de dificuldades, de sofrimentos, de catástrofes. E é por causa da fé que nós nos unimos e trabalhamos juntos como irmãos e nos ajudamos sem nenhum interesse, a não ser o de servir Jesus Cristo na pessoa do próximo. Nesse sentido somos chamados a cantar com o Salmista: “Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor” (Sl 117, 1). Façamos nossa a exclamação do salmista, que cantamos no Salmo responsorial: “porque é eterno o amor do Senhor!” Em Cristo humilhado e sofredor, crentes e não-crentes podem admirar uma solidariedade surpreendente, que o une à nossa condição humana para além de qualquer medida imaginável. Também depois da Ressurreição do Filho de Deus, a Cruz “fala e não cessa de falar de Deus Pai, que é absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem. Crer neste amor significa acreditar na misericórdia” (“Dives in misericórdia”, 7).

Nesse cenário de sofrimento e de privações para todos os nossos irmãos do Estado do Rio de Janeiro, quero unir-me a todos vós, queridos irmãos que sofrem por terem perdido as suas casas, por terem perdido os seus pertences, por estarem desabrigados, com frio, com fome, com dificuldades de toda a sorte. Vejo no olhar de todos o desejo de fraternidade e de encontrar caminhos novos. Muitos olhares tristes e outros com muitas perguntas. Sinto a necessidade de estar muito próximo de todos dizendo: coragem, vamos adiante e nos demos as mãos! Celebrarei na Catedral Metropolitana às 10h, dentro da Festa da Misericórdia, a Missa na intenção de todos os que perderam a vida nesta catástrofe, por todos os que sofrem e por todos os que ajudam e ajudaram-se uns aos outros.

Nesses dias de provação lembro a figura singular de Santa Faustina Kowalska, testemunha e mensageira do amor misericordioso do Senhor, e peço misericórdia pelo estado de calamidade que vive o nosso estado. Santa Faustina nos ensinou buscar em Jesus diante das catástrofes e dos sofrimentos.

Neste domingo não podemos nos esquecer do que o Evangelista João faz-nos partilhar a emoção sentida pelos Apóstolos no encontro com Cristo depois da sua Ressurreição. A nossa atenção detém-se no gesto do Mestre, que transmite aos discípulos receosos e admirados a missão de serem ministros da Misericórdia divina. Ele mostra as mãos e o lado com os sinais da paixão e comunica-lhes: “Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós” (Jo 20, 21). Imediatamente a seguir, “soprou sobre eles e disse-lhes: recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados, àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20, 22-23). Jesus confia-lhes o dom de “perdoar os pecados”, dom que brota das feridas das suas mãos, dos seus pés e, sobretudo, do seu lado trespassado, de onde saem os raios de misericórdia para toda a humanidade.

O Sagrado Coração de Cristo deu tudo aos homens: a redenção, a salvação, a santificação. Deste Coração superabundante de ternura, Santa Faustina Kowalska viu sair dois raios de luz que iluminavam o mundo. “Os dois raios segundo quanto o próprio Jesus lhe disse representam o sangue e a água” (“Diário”, pág. 132). O sangue recorda o sacrifício do Gólgota e o mistério da Eucaristia; a água, segundo o rico simbolismo do evangelista João, faz pensar no Batismo e no dom do Espírito Santo (cf. Jo 3, 5; 4, 14). Através do mistério deste coração ferido, não cessa de se difundir também sobre os homens e as mulheres da nossa época o fluxo reparador do amor misericordioso de Deus. Quem aspira à felicidade autêntica e duradoura, unicamente nele pode encontrar o seu segredo.

As misericórdias de Deus acompanham-nos dia após dia. Somos demasiado inclinados para sentir apenas a fadiga quotidiana que, como filhos de Adão, nos foi imposta. Mas se abrirmos o nosso coração, então podemos, mesmo imersos nela, ver também continuamente quanto Deus é bom conosco; como Ele pensa em nós nas pequenas coisas, ajudando-nos assim a alcançar as grandes.

Sei que têm muitos fatos e situações que ainda são desconhecidos (alguns deles me chegam através das Paróquias) e que necessitamos de nos dar as mãos. Mas o maior desafio será o da reconstrução e de fazermos juntos os planos para o amanhã, quando as emoções cessarem e as notícias não forem mais sensacionais para estarem na mídia: a Igreja é chamada a continuar a servir com alegria e compromisso todo o nosso povo, levados pela fé em Cristo e amor aos irmãos e irmãs sem nenhuma distinção por etnia, religião e ideologia.

Junto com a responsabilidade que há um ano assumi aqui nesta nossa cidade, o Senhor trouxe também belos sinais para a minha vida; um deles é o que vejo da solidariedade. Repetidamente vejo com alegria reconhecida quanto é grande o número dos que estão solidários em receber ou encontrar acomodações para as pessoas desabrigadas e sofridas com a situação de nosso estado, outros próximos dos que sofreram as perdas de seus entes queridos, muitos ajudando no resgate de pessoas e na limpeza e arrumação das casas. Tudo isso reconhecendo a luz de Cristo a iluminar os nossos caminhos. A todos, os que ajudam e que são ajudados, os que se colocam à disposição e aos que necessitam de cuidados, uma bênção especial.

Rio de Janeiro, 10 de abril de 2010

D. Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano do Rio de Janeiro

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